por HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
Imbiribeira é o bairro onde se localiza o edifício Inês, no Recife. “Um edifício caixote, térreo e primeiro andar, seis apartamentos”. O nome vem escrito em caligrafia azul sobre sete azulejos brancos. Mas não deve ser o edifício Inês e sim a Imbiribeira , personagem central desse longo poema.
Suspeito que tenha alguma coisa a mais aqui a ser ouvida ou lida. Em certo momento, intuímos que algo cobriu ou se sobrepôs a esta rua, soterrando os cheiros e a textura dos manguezais, a terra batida de suas calçadas que se alagavam inexoravelmente durante as chuvas, o som da chamada de um menino magro pra janta na hora do Angelus.
Da janela de um avião essa impressão se amplia. Imbiribeira se expande em cidade e o poeta se assusta com a visão de outra cidade sobre a cidade onde viveu. Resta apena um Recife irreconhecível. Recife e Imbiribeira serão uma só coisa? Onde entra o tempo nessa pergunta? E para onde vai a melancolia de uma memória exageradamente minuciosa? São traçados de ruas precisos demais, sonoridades ainda muito claras, sabores ainda vivos.
Tanta coisa mudou nos manguezais cobertos de asfalto. Tanta coisa ficou nesse tempo congelado no Edifício Inês, na Rua Pampulha, um fim de mundo perto do Aeroporto de onde o menino um dia sumiu para tão longe. Congelado como testemunhas do mangue, como a imaginação do menino.
É quando, no poema, tempos distintos se confrontam e revelam as vidas mínimas das calçadas e prédios da Imbiribeira.
Diz o poeta “Éramos meio pobres, meio tristes, meio belos (…) Éramos a Imbiribeira.”
A beleza aguda destes poemas, é tirada exatamente da busca e da expressão de um “Recife mínimo, sem charme, impermanente” que Toinho Castro consegue imprimir com maestria. O Recife da memória da memória do menino. O mesmo menino que, admirado, descobre a água, “a grande narradora da cidade” onde vivia. Disso se deu conta na grande enchente de 1975: “Como um gênio preso numa garrafa, silencioso, irado, esperando a tampa ser aberta. Era como se morássemos perto de uma caverna onde dormisse um terrível dragão. Majestoso, porém. Eu amava o Capibaribe e morria de medo dele.”
Aqui começa o movimento mais belo e denso dessa viagem vertical ao fundo de si mesmo. O poeta se dá conta de que trinta e seis anos exatos depois da trágica noite em que o Capibaribe ameaçou submergir Recife, seu pai morreu. Essa lembrança é por ele experimentada como um fio de Ariadne . O mesmo fio que a psicologia designa como a trajetória da descoberta de si. O poeta se sente livre agora para seguir o fio que Ariadne que oferece, e parte em busca da imagem de seu pai e de suas questões mais profundas, subsumidas nas terras lamacentas da rua Pampulha, na Imbiribeira. A rua que guarda todos os seus sonhos, esperanças medos e alegrias. Diz ele:
Me joguei da Imbiribeira,
na esperança de cair
o mais longe possível,
que é de onde e quando escrevo essa nota,
essa mensagem
na garrafa,
que afundará na terra
negra dos manguezais
que nem existem mais.
Toinho Castro, a partir de seu amor por Recife , aqui condensado na pequena e irrelevante Imbiribeira, nos encanta com a trajetória de um poeta, impregnado da vida nos manguezais, acompanhando a viagem poderosa de um herói comum em busca de si.
Em 23 de março de 2021
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA é escritora e professora de teoria crítica da cultura na UFRJ, onde coordena o Programa Avançado de Cultura Contemporânea, o projeto Universidade das Quebradas e o Fórum Mulher e Universidade. É autora e organizadora de muitos títulos, como Tendências e impasses (1994) e Explosão feminista (2018).
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